Os pequenos finais…
Por Gabriel Spolaor:
“O Eu foi construído nos tempos últimos como a base da modernidade. Eu penso, logo eu existo. O ponto de partida da existência era o sujeito na sua própria existência, a partir do ato de pensar, e de pensar sobre si mesmo […] No entanto, nos dias contemporâneos, uma nova forma de conceber o Eu vai se impondo, e agora não mais como construtor, mas com constructo. Pensar o Eu como constructo não joga fora a questão da Identidade, mas ela não é vista como ponto de partida. O ponto de partida é o construtor, e esse é o Outro. Logo, a questão que se impõe não é mais a questão da Identidade, mas é a questão da Alteridade. Eu sou pensado, logo eu existo, e penso!” (Miotello e Moura, 2013)
No diálogo com as palavras de Miotello e Moura, na disciplina da 2ª série do Ensino Médio da ECC, como aprofundamento das aulas de Educação Física, estamos estudando a temática da Identidade e Diversidade. Identidade que não parte e nem se fixa na individualidade do Eu, mas que se constitui permanentemente na relação com as Alteridades, com os Outros (até mesmo, Outros Eus que já fomos um dia). Para isso, iniciamos o percurso de investigação do tema gerador, a partir de um mapeamento cultural do grupo e construção de um planejamento dialógico-participativo em que os interesses e compreensões iniciais da turma foram considerados para traçar as rotas de trabalho coletivo.
Entre negociações e acordos, decidimos caminhar por vivências das Infâncias dos(as) alunos(as), em sua maioria jogos e brincadeiras tradicionais. No processo de vivência das práticas corporais, problematizamos e dialogamos sobre elementos culturais, históricos e sociais (questões da diversidade) do pega-pega, esconde-esconde, pular corda, elástico, mãe da rua, espelho, brincadeiras em roda, com bola e outras tantas realizadas. Com o próprio brincar, estamos aprendendo e tomando consciência que é possível resgatar experiências e memórias, percebendo as marcas na corporeidade que se expressam na relação de quem se envolve mais com o coletivo, quem se arrisca mais nos desafios das vivências e também, quem sente mais insegurança e se permite fruir menos na dinâmica lúdica.
Nesse percurso investigativo, entre uma vivência e outra, com rodas de conversa, começamos a compartilhar olhares, sentimentos, refletindo sobre a questão da Identidade e reconhecendo como estamos sendo como humanos que se formam, transformam, alteram no convívio com as Alteridades. Não só no brincar em si, mas principalmente, nesse momento de vida tão singular, com gestos brincantes, fomos desvelando as potências adormecidas das Infâncias que constituem as Juventudes do grupo.
Em dado momento da busca, em resposta à uma curiosidade pelo parquinho antigo, fizemos uma visita ao prédio da Educação Infantil. A intencionalidade pedagógica da caminhada era observar os espaços em silêncio, perceber como a experiência de voltar para um “território” que já foi seu, mobilizaria memórias, sentimentos e sobretudo, estranhamentos. O espaço físico como metáfora para o corpo, e nessa relação entre corporeidade, experiência e Identidade como elemento que está em constante movimento de abertura, fechamento e se sente com toda intensidade no simples gesto de olhar, de dar um passo, de imaginar, de falar… o silêncio proposto não durou muito! Ao final da caminhada, combinamos de escrever cartas narrando a vivência…
“A princípio, existia um desafio! Deveríamos ficar quietos enquanto fazíamos esse passeio, mas as lembranças foram invadindo nossos corpos, e no final, ninguém conseguiu ficar calado. Foi como uma volta ao nosso passado, uma viagem no tempo.” (Luísa)
“Uma das memórias que tive acesso foi na cozinha do infantil, lembrei da minha classe fazendo macarrão lá, e depois comendo…” (Diego)
“Era tão legal ter nossa aula de cozinhar, fazer biscoitinhos em formatos fofos e bolinho de chuva que eu lembro de ter ficado muito bom.” (Beatriz)
“Na caminhada comentei como tudo aquilo parecia bem maior quando eu era pequena! Tive essa sensação. As mesinhas, os brinquedos, os banheiros, tudo bem menor do que o normal…” (Carol)
“Me lembro de que tinha medo de um brinquedo do parque, pois achava ele muito alto, mas agora o brinquedo nem parece tão grande ou assustador assim.” (Ana Beatriz)
“Reencontrei minha professora do 1º ano e ela me reconheceu mesmo depois de tanto tempo.” (Isabel)
“Hoje visitei os corredores e vi você correndo por baixo dos meus olhos. Lembrei dos cheiros e cores que lhe eram tão familiares e agora me são tão distantes. Vi outros brincando como você tanto brincava e senti uma saudade apertada de uma vida que eu já não lembrava mais já ter sido minha.” (Amanda)
“As memórias felizes de nossas infância, principalmente aquelas vividas com quem amamos, não são apenas memórias, elas fazem parte de quem nós somos, nos lembram de um tempo em que a vida não parecia ser tão complicada, onde tudo parecia tão simples… Nem sabíamos a magia que era viver quando nossa única preocupação era não perder o desenho favorito. Isso é uma coisa que me incomoda, não existe uma transição de uma fase para outra, a vida não te avisa quando vai te afastar dos seus atuais hábitos, das suas atuais relações… Só percebemos o quanto as coisas mudaram quando já estamos presenciando isso de outro ângulo, longe o suficiente para podermos sentir saudade e nos perguntarmos, quando foi que isso aconteceu? Um dia, eu brinquei pela última vez naquele parquinho com aquela amiga. Todos carregamos um pouco de saudade, daqueles momentos vividos que são dificilmente esquecidos. Vão se passando os dias, as horas, os minutos, tudo de uma forma tão natural e normal, que a gente nem consegue perceber esses pequenos finais, e sabe o pior disso? Não podemos voltar atrás, porque a vida não tem um replay para aproveitarmos mais uma vez, nem que seja por poucos minutos. São esses momentos que vão embora e a saudade é a que prevalece daquilo que até então, estava logo ali…” (Giovana)
“Esse projeto tem sido muito especial, porque eu me lembrei das coisas boas que eu vivi e queria viver de novo. A escola foi um lugar que eu aprendi e aprendo muito e fez com que eu me tornasse a pessoa que sou hoje. Se eu tivesse ido para outra escola com outras metodologias e outras formas de aprendizado, eu seria a mesma pessoa e seguiria os mesmos valores que tenho hoje? Os valores como amizade, empatia, respeito, e simplesmente o ato de pedir por favor eu aprendi aqui na ECC.” (Ana Luiza)
Na aula seguinte, fizemos a leitura coletiva das nossas cartas, ouvindo nossas escritas nas vozes de outros colegas. Gestos e palavras em composição estética mobilizando estranhamentos, risos e choros compartilhados!
Em agradecimento pelo cuidado da Educação concretizada, enviamos as cartas para três professoras do Infantil 1 e 2 que estavam com suas turmas brincando no dia da caminhada. Da gratidão, recebemos um convite… os pequenos queriam brincar conosco na próxima semana, lá no parque!
De pronto, aceitamos e como novo desafio, nos perguntamos: O que as crianças pequenas podem nos ensinar? Como podemos nos aproximar com cuidado do seu espaço de brincar valorizando suas expressões, sua imaginação, brincando a brincadeira delas? Seremos capazes? Perguntas que despertaram reflexão e ação, que serão contadas em uma narrativa próxima…
Por ora, esta narrativa se encerra com a frase de Lya Luft que diz: “A infância é chão que pisamos a vida toda”. Cabe a todos nós, deixarmos esse território aberto para a “caminhada” e a vivência nas múltiplas manifestações da vida, da corporeidade em jogo, dança, esporte, literatura, riso, festa… Culturas… e nessa perspectiva, os pequenos finais da Identidade podem ganhar outros contornos e sentidos, uma vez que, serão apenas traços brincantes, cambiantes e provisórios de seres que assumem a responsabilidade de viver, sonhar, se expressar e criar processos de humanização comprometidos com as singularidades dos Outros.
Prof. Gabriel em diálogo com Luísa, Amanda, Isabel, Diego, Beatriz, Ana Beatriz, Carol, Giovana e Ana Luiza (Maio/2024)